A noroeste da cidade de Nagasaki, mas ainda na província que tem esse nome, fica Hirado. Mais uma vez "Hirado" é tanto o nome da ilha que se desprende de Kyushu como da cidade que é a capital da ilha. A distância é tão curta que chegar a Hirado se faz por uma ponte, um percurso que aliás é particularmente bonito ao final da tarde porque se vê o pôr do sol no mar e todas aquelas pequenas ilhas. (ver mapa)
Hirado (平戸市, Hirado-shi), província de Nagasaki |
Hirado é então uma cidade-porto, numa baía protegida do vento e sem ondas. Perfeita para aportar, e mesmo para barcos grandes pois as águas são fundas mesmo até à beira da costa. Não é por isso de surpreender que os barcos dos mercadores macaenses, que eram essencialmente portugueses, tivessem escolhido este porto para se aproximarem daquilo que até então parecia ser uma potencial terra de "fama e fortuna" - o Japão antes do período Tokugawa. Certamente que as guerras entre chefes militares/déspotas feudais (em japonês: daimyo) era problemática, mas na verdade essa era mais uma das razões pelas quais alguns deles recebiam tão bem estes "brancos do sul"*. A elite militar pretendia adquirir armas de fogo rapidamente, e apreciavam muitíssimo as vestimentas (casacos e chapéus sobretudo), bem como as novidades gastronómicas (sobretudo o açúcar!), a música, os conhecimentos geográficos (estes dois por via dos colégios jesuítas), entre outros.
Assim, o porto de Hirado cresceu rapidamente na segunda metade do séc. XVI, e a ele afluíam os negociantes japoneses que pretendiam adquirir materiais exóticos para ir vender nas grandes feiras de Kyushu, ou mesmo levar para Sakai - o porto de Osaka. A história sucedeu-se rapidamente e Hirado deixou de ser o porto preferencial para os mercadores representantes da coroa portuguesa, ou seja, que vinham na Nau do Trato a partir de Macau (e que começava em Goa), pois mudaram-se para Nagasaki **. Alguns comerciantes privados podem ter continuado a frequentar o porto mas este ficou a ser administrado sobretudo pelos holandeses, que aí estabeleceram uma "fábrica" (mas deve entender-se como uma feitoria) análoga à que tinham em Jacarta.
A memória desses tempos em Hirado ainda existe, e bem viva. A cidade está a investir da sua promoção turística usando o tema da cultura dos séculos XVI, XVII e XVIII. Por exemplo, no local onde seria a "fábrica" da VOC (a Companhia das Índias Orientais dos Holandeses) ergueu-se um edifício nos últimos dois anos que é uma réplica do que se acredita ter existido (com base em estudos do exemplar de Jacarta, mais bem preservado), e os souvenirs da cidade são citações directas dos exotismos que animavam a cidade, passando tanto pelos portugueses como pelos holandeses. Quando falavam directamente comigo, e calculo eu que seja mais por simpatia que por exactidão, as pessoas enfatizavam sempre o lugar especial em que tinham as memórias dos portugueses. Indicaram-me, por exemplo, que o supermercado que se criou na rua que dá acesso ao porto se passou a chamar "merucado" porque os cidadãos votaram nesse nome. A justificação foi "sempre se chamou isso àquele lugar, não ía mudar agora por se fazer um edifício com cobertura".
Eu ia tendo um "treco", como se diz na gíria, pois aquilo era o século XVI a falar directamente com um observador do século XXI. Prossegui cautelosamente, tentando que a minha curiosidade não traísse a exactidão das minhas perguntas como investigadora: "E sabe o que quer dizer mercado?" "É o nome do sítio." " E em português, sabe o que é?" "É uma palavra portuguesa?!" "Sim, significa local onde se compram e vendem produtos, onde se fazem negócios." "Ai sim?! Não se sabe isso aqui. Toda a gente sabe que se chama isso mas não sabem que quer dizer isso em português!" " Tem ideia desde quando se chama mercado a este lugar? É uma coisa recente?" "Não sei, sempre ouvi assim, e sou daqui, e os meus pais também lhe chamavam isso, era simplesmente o nome daquele pedaço de área ali..."
Mais acima, subindo o desnível íngreme desta sucessão de recortes na costa, chega-se a uma casa senhorial do século XIX, na boa e tradicional arquitectura japonesa do período Edo. Nessa casa gigantesca, que é legado da família Matsuura, criou-se um museu com o espólio da colecção da família. O Museu Matsuura é portanto o principal repositório de arte de Hirado e um dos pontos fortes para os visitantes - que aqui são quase exclusivamente japoneses e não estrangeiros. (veja-se o link para a review do TripAdvisor sobre este Museu)
Neste Museu encontrei-me com o seu director e elemento da família Matsuura, que mais uma vez atestou que prefere a história dos primeiros 10 ou 20 anos do porto de Hirado (presença dos portugueses) do que todo o resto do período de presença holandesa. Eu recebia estes comentários com um sorriso mas sabia que estavam a ser sobretudo simpáticos para mim. Em todo o caso ele alongou-se a justificar as suas razões. Aparentemente o que causou maior impacto foram esses primeiros anos, a presença de uma etnia totalmente diferente de todas as que eram conhecidas, e a primeira que não era "asiática". "E como reagiu a população?" " O Japão não estava em guerra com o exterior, aquilo não era uma invasão, apenas a visita de comerciantes, por isso foi pacífico e seguiu o processo habitual de registo na alfândega e pagamento de impostos. Para as pessoas era bom porque tinham produtos novos e diferentes. A chegada da nau trazia vida a Hirado. Foi uma mudança espantosa em poucos anos, e nunca mais se repetiu." "É por isso que têm ainda referências à presença dos portugueses aqui?" "Sim, eu quero ter essa referência no Museu."
E depois levou-me ao café/loja, onde vendem doces (que na verdade são mais açúcar com um toque de sabor) e diversos souvenirs. "Os portugueses trouxeram o açúcar. Doces e portugueses estão ligados." Em japonês esta frase é particularmente interessante, acreditem. Eu fiquei um pouco confusa porque pareceu-me ouvir "Os portugueses trouxeram a doçura" mas depois ele esclareceu-me. Em todo o caso é curioso que a memória seja selectiva, que se pretenda associar os "bons velhos tempos" de glória e prosperidade a um conjunto de eventos que, na verdade, não teriam sido (apenas) positivos.
E depois levou-me ao café/loja, onde vendem doces (que na verdade são mais açúcar com um toque de sabor) e diversos souvenirs. "Os portugueses trouxeram o açúcar. Doces e portugueses estão ligados." Em japonês esta frase é particularmente interessante, acreditem. Eu fiquei um pouco confusa porque pareceu-me ouvir "Os portugueses trouxeram a doçura" mas depois ele esclareceu-me. Em todo o caso é curioso que a memória seja selectiva, que se pretenda associar os "bons velhos tempos" de glória e prosperidade a um conjunto de eventos que, na verdade, não teriam sido (apenas) positivos.
O Galo de Barcelos, reinterpretado. |
A disposição dos souvenirs lá está, para quem queira sentir ainda a aragem vinda do porto e desfrutar de um imaginário século XVI. E para casa pode mesmo levar um paliteiro em forma de galo de Barcelos***.
Há lá coisa mais "tuga" do que isso?
Inês Carvalho Matos
(III/CES - Universidade de Coimbra; CHAM - FCSH-UNL)
Comissão organizadora - Namban 南蛮 1543-2013
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* "brancos do sul" para tradução de "namban jin", considerando que "komo jin" ou "ruivos" era o nome dado aos holandeses, eram nomenclaturas essas usadas tanto em Hirado como em toda a província de Nagasaki; onde malaios, cambodjanos, chineses, léquios (ilhas Ryukyu) e outros grupos étnicos tinham outros nomes específicos** O daimyo de Hirado retaliou esta decisão, abandonou o cristianismo e tornou-se hostil aos portugueses depois deste evento, pois perder a exclusividade de comércio e dos impostos que daí advinham foi encarado como uma traição
*** O galo de Barcelos foi encomendado a uma loja em Tokyo que os recebe por importação.
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