domingo, 31 de março de 2013

Semana Santa em Kochinotsu

   Por ocasião das celebrações pascais, partilhamos um excerto de uma carta do padre jesuíta Luís Fróis, escrita em Kochinotsu (Cochinotsu) [Minamishimabara, província de Nagasaki] no ano de 1582, onde o jesuíta descreve os Ofícios de Trevas e Paixão de Quinta e Sexta-feira Santas. O relato testemunha a peculiaridade das festividades pascais que resulta do encontro cultural entre as tradições festivas portuguesas e japonesas. Esta carta integra a obra História de Japam, do mesmo autor.

Minamishimabara, província de Nagasaki (ilha de Kyushu)

    «A quinta feira apareceo o sepulchro em que se encerrou o Senhor, cousa de que todos os Japões se maravilharão. Mandou elrei pôr ali doze homês armados, e as armas eram delrei novas, e muito lustrosas. O ofício da sexta-feira moveo a tanta devoção que não sei se ficou alguê que não derramasse lágrimas. Sairão os meninos Japões com suas alvas, e coroas de espinhos nas cabeças, e levarão os martírios nas mãos dizendo cada hum delles seu dito na mesma língoa em que se declarava aquelle misterio, e os mesmos meninos movidos com devoção choravão de maneira que não podiam ir por diante com os seus ditos, e por a gente ser muita em grande cantidade ficou pera depois de jantar, beijarem o crucifixo, quasi ate a tarde.

   Na fonte do sabado santo não tinhamos nada porque a mandou elrei a maneira de Japão: havia na fonte hûa laranjeira que tinha as folhas de seda, e muitas laranjas de ouro, e hum pinheiro que tinha as espinhas de seda verde crua tam tezas que parecia picarião se lhe posessem a mão, e em cada ramo tinha hûa pinha brava como são os de cá muito natural; tinha mais algûas canas, cujo tronco era de pao e as folhas de seda tão naturaes que escaçamente se podia adivinhar, que erão côtrafeitas. No meo da fonte estava hûa tartaruga tão fermosa, e natural que parecia ao menos depois que a agoa lhe foi chegando aos pés, que se queria lançar nella.

   Em se chegando a noite concertarão os christãos muita diversidade de lanternas de papel de diversas figuras pera a procissão do dia seguinte, tanto para ver que me affirmo não ter visto nestas terras partes cousa em que mais enxergasse a sotileza dos Japões em cortar cô faca que naquelas peças. O numero das alanternas, que quasi parecião todas diversificarem nas figuras foram estimadas em numero de tres mil, e as principais forão três, que trouxe Pantalião filho delrei, hûa das quais era da figura de hûa igreja, com sua capella, e altar, seu frontal de brocado da China e tâtos lavores, e tam sotis nas colunas, que a todos punha admiração, à porta dela estava hum disciplinante todo ensangoêntado, ouve otras muitas e diversas historias do Japão, ao tempo de sair a procissão, estando a rua toda cuberta de arcos, e de muitas flores com grande serenidade, avia ahi grandes engenhos e invenções de fogo, de tantos, e tam diversos artificios pello ar, que juntamente levavão os olhos de todos após si, e não havia quem se não torcesse pera os ver.

   Os meninos que na sexta feira hião com coroas despinhos, as levavão agora douradas, e prataeadas mui lustrosas, ouve duas danças, hûa que fez Pantalião terceiro filho delrei, e outra hum genro seu, vestido ricamente de seu modo. De hûs tres baluartes saião muitas rodas, arvores, e outros artifícios de fogo, que davam grande lustro à procissão, era tanta a gente, que com de noite se lançar fora e fecharem todas as portas, quando veo a meia noite, e antes della estava a igreja chea sem poder caber mais huma so pessoa, e a mais desta gente tinha entrada por mar em embarcações.»


Luís  Fróis , S.J.*
História de Japam, pág. 309


Estátua de Luís Fróis em Sakai
(foto: Tokyo Dayori)
Placa memorial de Luís Fróis no Parque dos Mártires, em Nagasaki
(foto: Japan Visitor Blog)

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   Relatos de festividades de cariz religioso, nomeadamente na Páscoa e no Natal, são frequentes nas relações dos Jesuítas que integraram a missionação em terras nipónicas, como é o caso do Pe. Luís Fróis. A importância das festividades era altamente valorizada pelos padres jesuítas como uma via para fazer chegar as tradições cristãs (e naturalmente, a evangelização) ao povo japonês. Estes relatos denotam, por outro lado, o respeito dos missionários pelas tradições festivas japonesas que, não obstante, provocavam nos europeus uma sensação de admiração e assombro. A simbiose de elementos festivos portugueses/europeus e japoneses reflecte a importância do "convívio intercultural" que, de uma forma geral, pautou as relações luso-nipónicas e que desde cedo foi valorizado pelos Jesuítas no contexto do difícil processo de evangelização do Japão.

   Relativamente a este ponto, Armando Martins Janeira escreve: «O sentimento da distância e de viver num meio tão estranho levava os jesuítas a entranhar-se neste meio e a identificar-se gradualmente com os costumes japoneses. Destes adoptavam e introduziam nas festas religiosas tudo o que não colidisse com o espírito cristão. Este sentimento ecuménico facilitou a penetração rápida e profunda dos sentimentos cristãos entre o povo japonês. Os Japoneses podiam, nas festas católicas, ter divertimentos e prazeres estéticos semelhantes àqueles que experimentavam nas festas xintoístas tradicionais, satisfazendo o seu gosto da cor, da exibição espectacular da representação teatral. E não faltavam sequer, a contrastar com o lado alegre e solar da alma japonesa, expressa nas práticas xintoístas, as cerimónias tristes e pesadas da Paixão de Cristo, em que até as crianças choravam sob a atmosfera lúgubre que podiam evocar-lhes as celebrações severas nos escuros templos budistas, com cantos pesados em que se sente a sombra da morte.»**


*  Societas Jesu  (Companhia de Jesus)
** JANEIRA, Armando Martins, O Impacto Português sobre a Civilização Japonesa, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1970 [2ª ed. (póstuma, mas incluí a revisão do autor), prefácio de Pedro Canavarrom Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1988.], pág. 86. 
(Traduzido para japonês: Namban Bunka Noraiki, tradução de Takiko Matsuo, The Simul Press, Inc., Japão, 1971)
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